Os 30 anos da Constituição

Os 30 anos da Constituição

A Constituição da República Federativa do Brasil completa 30 anos às vésperas de uma eleição beligerante e polarizada, que sob muitos aspectos é o corolário da ingovernabilidade do Estado brasileiro. É certo que essas três décadas de história foram marcadas por profundas transformações sociais, econômicas e políticas, mas creio que a nossa Lei Maior já prenunciava, em grande medida, a crise que vivemos.

Para começo de conversa, é preciso compreender que essa ingovernabilidade decorre principalmente de três vícios que perpassam toda a história da república brasileira: o idealismo, o oportunismo e o estatismo.

Desde a proclamação da república, em 1889, tivemos seis constituições, todas elas marcadas por esses vícios fundamentais e, consequentemente, pela instabilidade e pela fragilidade institucional, o que ajuda a explicar por que vigoraram por períodos tão curtos e conturbados. É sintomático que a mais longeva das constituições brasileiras seja justamente a Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 1824.

A Constituição de 5 de outubro de 1988, infelizmente, não é uma exceção.

O primeiro vício, o idealismo, pode ser entendido como uma forma de “política silogística”, para usar a expressão de Joaquim Nabuco. “É uma pura arte de construção no vácuo. A base, são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo, e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais.”

Esse idealismo malsão foi alçado ao plano constitucional já em 1891, como demonstrou Oliveira Vianna, no clássico O idealismo da Constituição. O grande Rui Barbosa, admirador da constituição norte-americana de 1787, quis importar o seu federalismo para o Brasil, tentando modificar por simples fiat legiferante a composição política da sociedade brasileira. No entanto, como destacava Vianna, “o destino de um ideal, o êxito de um ideal, a difusão de um ideal não dependem nem da sua beleza, nem da sua grandeza; mas, sim, da sua conformidade com a vida.” Daí convivermos até hoje com um federalismo postiço, cheios de entes criados apenas para sustento de burocracias “orçamentívoras.”

Na Carta de 1988, esse idealismo pode ser percebido até mesmo no epíteto que recebeu de Ulysses Guimarães: “constituição cidadã”. O seu texto se tornou um verdadeiro “dicionário de utopias”, na feliz expressão de Roberto Campos. “É saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social; é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela.”

Nosso sistema de governo também foi infectado pelo vírus do idealismo. O projeto inicial de um modelo parlamentarista foi transformado em um presidencialismo peculiar, com elementos típicos do parlamentarismo. Isso leva a uma esdrúxula composição entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, que tem a promiscuidade como regra. “Aos dois clássicos sistemas de governo – o presidencialista e o parlamentarista – o Brasil acaba, com originalidade, de acrescentar mais um – o promiscuísta”, anteviu Roberto Campos.

O segundo vício é o oportunismo que decorre daquilo que Paulo Mercadante chamou de “consciência conservadora” e que consiste em um arranjo momentâneo capaz de compor ideais flagrantemente contraditórios. Indiferente a qualquer incoerência lógica ou discursiva, essa tendência (que antecede o período republicano) foi capaz de “conciliar, antes de tudo, a revolução nas relações externas de produção com o escravismo nas relações internas de produção, o instituto da escravatura e a defesa do liberalismo econômico.”

Na atual Constituição esse arranjo oportunista significou um inchaço do texto constitucional, que passou a albergar uma extensa e detalhada regulamentação de efemeridades. A Carta prevê, por exemplo, a chamada escolar como mandamento constitucional (Artigo 208, §3º) além de determinar que o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal (Artigo 242, §2º).

O inchaço e a falta de lógica já estavam presentes no projeto que foi encaminhado para a comissão de sistematização da assembleia constituinte, como identificou o seu presidente, Bernardo Cabral: “Tal como a grande maioria dos senhores constituintes, também detectei, no anteprojeto, a par das virtudes e inovações elogiáveis, inconsistências, superfetações, desvios e, acima de tudo, ausência de um fio condutor filosófico.”

Depois disso, com a formação do chamado “centrão”, o texto tornou-se ainda mais assistemático e efêmero. Isso sem contar a fraude perpetrada no âmbito da comissão incumbida por uniformizar a sua redação, que alterou dispositivos constitucionais sem jamais submetê-los à votação da assembleia. O fato gravíssimo foi jocosa e orgulhosamente confessado por Nelson Jobim, que foi constituinte e depois Ministro do Supremo Tribunal Federal e Ministro de Estado, quando a Constituição completou 15 anos. Um desses acréscimos clandestinos foi a inclusão, no Artigo 2º, da expressão “independentes e harmônicos entre si” para se referir aos Poderes da União, supostamente por sugestão do hoje Presidente da República Michel Temer.

O texto final da nossa Constituição, por tudo isso, representava mais um arranjo momentâneo de poderes do que um verdadeiro sustentáculo institucional, o que explica por que, nesses 30 anos, ele foi emendado 105 vezes (99 emendas constitucionais e 6 emendas de revisão). Em vez de servir de base sólida para o desenvolvimento institucional, a Constituição Federal tem sido uma espécie de plataforma movediça em que atores políticos e instituições buscam equilibrar-se e reequilibrar-se continuamente.

Finalmente, o terceiro vício fundamental é o estatismo, ou seja, a crença em um Estado mais forte do que a Sociedade, que deve assumir a prerrogativa de conduzi-la e doutriná-la. Por isso Antônio Paim afirmou com acerto que sob a égide da Constituição de 1988 a questão chave continuava a ser exatamente a mesma que marcou o período autoritário que a precedeu: as relações entre o Estado e a Sociedade.

Na Carta de 1988 esse estatismo assumiu a forma do dirigismo econômico e social, insuflado de nacionalismo embusteiro e terceiro-mundista, mas influenciado pela Constituição portuguesa de 1976 e pela obra o jurista de formação marxista Joaquim Gomes Canotilho.

A ideia da constituição-dirigente não se limita a organizar o Estado, delimitar as competências dos órgãos que o compõem e limitar objetivamente suas atribuições. Ela veicula também um plano abrangente de transformação da própria Sociedade, que se torna simples destinatária da iniciativa estatal. É o Estado, e não a Sociedade, que passa a conduzir não apenas o processo econômico, mas todas as iniciativas educacionais e culturais.

É bom lembrar também que muitas vezes é o Poder Judiciário que, extrapassando os seus limites institucionais, assume a postura “ativista” de conduzir a Sociedade em nome do Estado, fazendo-o sob a argumento de suprir a “omissão” dos outros Poderes. Assim, ao menos sob certo aspecto, o “papel iluminista” do Supremo Tribunal Federal que Luís Roberto Barroso define como o dever de “empurrar a história” em momentos cruciais e “impor-se sobre o senso comum majoritário” não passe de um desdobramento da ideia de um Estado condutor da Sociedade.

O primeiro resultado dessa prevalência estatal é o paternalismo, ou seja, a criação de uma lógica da dependência jurídica, em que todos os direitos são dados aos cidadãos pelo Estado, como se fossem benesses concedidas por um Senhor. O segundo é o patrimonialismo que, a pretexto de garantir os direitos “dados” pelo Estado à Sociedade, apropria-se cada vez mais do resultado do trabalho de seus cidadãos para sustentar uma estrutura burocrática imensa e pantagruélica.

O idealismo, o oportunismo e o estatismo formam o pano de fundo em que se desenvolvem os males da corrupção, do desequilíbrio institucional e, por fim, da ingovernabilidade. Por isso, ao longo dos 30 anos de história da nossa Constituição, a necessidade de reforma tornou-se um lugar comum na vida pública brasileira.

Precisamos, é indubitável, de reforma. Mas de que tipo?

Aqui, a imprudência nos conduziria àquele açodamento que sempre leva à deformação, que não se confunde com a verdadeira reforma. Para extirpar esses três grandes vícios de nossa vida institucional precisamos seguir um princípio simples, ditado pela prudência e pelo senso comum: antes de destruir uma Constituição é preciso compreendê-la como como instituição histórica, avaliando com o devido cuidado a que propósitos servem suas disposições e indicando com clareza se são bons ou maus propósitos e, sendo bons, se seria possível servi-los melhor.

Renegar nossa agora trintenária Constituição seria repetir o mesmo erro que já cometemos tantas vezes. Precisamos de sabedoria para reformá-la com paciência e humildade, sabendo que a vida institucional do país não pode ser instantaneamente transformada pela promulgação de um documento legislativo. A construção de nossa tão sonhada estabilidade democrática depende dessa consciência.

 

André Vinícius Seleghini Franzin

Advogado – OAB/SP n. 300.220

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